O futebol de rua é cada vez tido com menor consideração no futebol, quando deveria ser exactamente o contrário, pois prima aquilo que hoje em dia deveria ser primado: o relacionamento com a bola. O futebol de rua permitia a todos os miúdos, e graúdos também, jogar em diferentes contextos que lhes levantavam uma variabilidade de problemas, aos quais os jogadores tinham de dar resposta através de soluções criadas no momento ou por imitação de outros colegas que tinham sucesso no que faziam. O futebol de rua era, por isso, um momento de criação/recriação e de potencialização exponencial por excelência.
O futebol de rua constituía-se como um espaço fundamental para a construção de Talentos (Messi, Maradona).
Hoje em dia a preocupação dos pais passa por oferecer aos filhos a educação mais diversificada possível, o que por um lado é louvável, mas por outro acaba por retirar tempo e espaço às crianças, pois não lhes permite ter manobra para as suas brincadeiras essenciais.
Também é verdade que os espaços para o futebol de rua são cada vez mais diminutos, dificultando assim a realização do mesmo. Face a estas barreiras, ou seja, face às dificuldades que são impostas pelo próprio desenvolvimento da sociedade, o grande conjunto de vivências que estava associado ao futebol de rua (todas elas fundamentais para a construção de talentos) estão comprometidas, assumindo-se deste modo o futebol de rua como uma realidade cada vez menos presente nas sociedades actuais.
Este acesso cada vez mais restrito à melhor escola de futebol do mundo está a comprometer a qualidade do futebol de hoje em dia, que está associada de uma forma directamente proporcional com a diminuição do futebol de rua.
A prova disso encontra-se no futebol que está a ser mecanizado, está ser formatado. Pois o espaço de manobra de criação e recriação para os jovens futebolistas é cada mais restrito. O futebol de rua permitia às crianças ter uma percepção ajustada da realidade, o que lhes conferia uma capacidade de intervir sobre a mesma, pois a rua dava-lhes uma variabilidade de problemas aos quais teriam de responder por elas próprias, e sobretudo, de uma forma não mecanizada. Como todos os dias surgiam novos problemas, levava-os à criação de novas resoluções, novos ajustamentos, novas adaptabilidades à realidade! Isto permitia também às crianças adquirir um conjunto vasto de resoluções para um mesmo problema, o que fazia com que tivessem uma maior capacidade para gerir às circunstâncias contextuais. Isto permitia a construção dos talentos.
Para mim, talentos, são os jogadores que erram menos que os outros, apresentando um leque de opções mais vasto para determinado problema, onde a diversidade permitia concretizar as suas acções de uma forma variada, conseguindo jogar quase sempre com sucesso, pela capacidade recreativa.
Como já foi referido o futebol de rua prima aquilo que hoje em dia deveria ser primado: o relacionamento com a bola. Se o tempo que as crianças dispõem para jogar futebol é cada vez menor, a necessidade de estarem em contacto com a bola nas escolas de formação deve ser maior e conseguimos isso como? Jogando, Jogando, Jogando e Jogando…
Para muitos a bola trata-se de um objecto estranho, um corpo estranho, pois muitos dos miúdos que vão para as escolas de futebol são obrigados a ir e não vão por vontade própria. Por isso, há uma necessidade extrema das crianças estarem em contacto constante com a bola, de forma a ganharem sensibilidade e familiaridade com a mesma. Então, cabe aos treinadores, ou se preferirmos aos chamados “professores de futebol” criar contextos propícios ao desenvolvimento desta relação tão importante no futebol. A sua ausência tem comprometido a qualidade dos nossos jogadores e por conseguinte a qualidade de Jogo, do fenómeno.
É uma aberração quando vemos os “professores de futebol” realizarem treinos fora do contexto de jogo com estes miúdos ou fora dos contextos que propiciem o desenvolvimento da relação com a bola. Então para quê realizar exercícios com muitos cones, com muitas colorações (?), quando o importante passa por lhes dar tempo de contacto com a bola num contexto aproximado com aquele que se configurava o futebol de rua, ou seja, jogo e mais jogo. Onde os problemas apareciam a todos os momentos. Podemos criar um jogo com condicionantes tendo em vista o potencializar desta relação, que tem sido tão desvalorizada, sobretudo nas idades mais precoces. É importante colocar os miúdos com bola, de forma a estes poderem começar a controlar o seu próprio corpo no relacionamento de um corpo estranho (para muitos adultos ainda é!). Só quando os miúdos controlarem o corpo no relacionamento com este “ objecto estranho” é que poderemos desenvolver outros contextos de exercitação, procurando atingir outros princípios. Contudo, a presença da bola é desde o primeiro momento absolutamente indispensável.
Outro aspecto importante passa pela estimulação do desenvolvimento do relacionamento com a bola com os dois pés. Pois para mim é chocante ver alguns miúdos, e mesmo alguns jogadores profissionais evitarem orientar a bola para o seu “pior pé” pois não são capazes, muitas das vezes, de realizar um passe de poucos metros, comprometendo o grau de concretização das suas intenções, e por consequência o seu jogo e o da equipa também.
Um aspecto que me parece importante frisar, é o conceito de técnica. A técnica pode e deve ser desenvolvida nestes contextos de relacionamento com bola. Contudo, técnica não se refere apenas ao momento em que o jogador está com bola. Técnica passa pelo momento em que antecede (intenção de projecção , que se tem (intenção em acção) e no seguimento que se dá à bola (intenção de seguimento). Pois o relacionamento com a bola não se restringe aos contactos com ela. Passa pelas simulações antes de a receber, por exemplo. E isto deve ser estimulado em contextos propícios, como por exemplo: antes de fazer uma finta, receber a bola de outro colega, através do passe, para o obrigar a simular antes de receber a mesma (criar espaço para a receber e poder fintar), ou então, realizar jogos em espaço reduzido, onde a simulação passa a ser uma dominante. São estes contextos que devem ser criados pelo treinador, nos quais deve participar activamente pois o mais importante na formação não é o “ter de fazer”, mas sim “o fazer” (competência do saber fazer). O treinador deve fazer e não apenas pedir pois a visualização assume extrema importância nestas idades mais novas na Formação. Demonstração que deve ser exagerada de forma a enfatizar o gesto, o movimento pretendido. As simulações, as fintas, devem ser feitas de uma forma exagerada, de maneira a exacerbarmos o lado criativo, o lado enriquecedor do jogo.